É proibido

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Você sabia que pode tentar proibir uma ideia, mas não pode me impedir de pensá-la?

Você não pode bater no meu pensamento. Você não pode prendê-lo, você não pode proibi-lo, porque a jurisdição da minha cabeça é toda minha.

Mesmo se eu morrer, você não tem garantia de onde mais essa ideia existe.

É claro que você sabe disso ou, ao menos, espero que saiba. Então deve saber também que a noção de proibição é uma coisa muito engraçada.

A proibição nasce da ideia de que as pessoas fazem, pensam, dizem, digitam e escrevem coisas que não deveriam ser feitas, pensadas, ditas, digitadas e escritas. Ou desenhadas e pintadas. Ou filmadas. Ou contabilizadas. Ou qualquer outro verbo. E, depois, se desenvolve a partir da ideia de que você pode fazer com que algo não seja feito ao impedir que seja feito.

Parece que não faz sentido, mas é uma das maiores verdades que já observei no mundo: você não pode fazer com que algo não seja feito ao impedir que algo seja feito.

Vamos entender.

Para que uma proibição exista, é preciso que exista, antes, uma ação. Ou um objeto, ou pessoa. Ou só uma ideia. Em outras palavras, para que uma proibição exista, você só precisa de algo para proibir.

Você nem precisa de um bom motivo, ou que faça qualquer sentido, ainda que, claro, geralmente toda proibição tenha supostamente algum sentido, ainda que não seja o que é declarado.

Você cria uma lei e cria mecanismos para que essa lei seja cumprida. Esses mecanismos podem ter várias formas, mas no fim das contas, por mais que sejam práticos e físicos, a ideia implícita em todo o processo é que a proibição efetivamente é uma batalha de ideias.

Quando você diz que não quer algo, você diz, implicitamente, que aquela coisa que não quer faz parte da lista de coisas indesejadas. Implicitamente, também, há a lista de coisas desejadas. O mesmo acontece para proibições: elas idealmente servem para conduzir a um comportamento, a partir da remoção do que não se aplica ao comportamento desejado.

O que uma proibição faz com as pessoas, assim?

Vou dizer: nada.

Minto, ela faz com que as pessoas estejam sujeitas a mecanismos de proibição, tornando, assim, suas possibilidades de fazer o que foi proibido muito mais limitadas. Pode ser que sintam medo, ou vergonha, ou culpa por fazerem o que é proibido, pois há o mecanismo de punição relativo à proibição em jogo, mais, claro, qualquer tabu social que possa surgir derivado dele.

Mas e a vontade? E o pensamento? Todos eles continuam existindo. Você pode destruir tudo que seja físico que decidiu proibir, todo registro, mas você não consegue matar uma vontade, da mesma maneira que não pode matar uma ideia. Usando uma referência já bem batida, nosso amigo V nos lembra que “ideias são à prova de balas”.

"V for Vendetta", Alan Moore, David Lloyd, Tony Weare

"V for Vendetta", Alan Moore, David Lloyd, Tony Weare

Se não há medo, vergonha ou culpa, não haverá motivo para que a ideia não permaneça. Se há orgulho, se há uma noção de que o que se faz é certo, a ideia permanecerá. Às vezes nem é preciso nada disso. Basta vontade.

E com a ideia, se o mecanismo de proibição tiver a possibilidade de ser burlado, ele será burlado.

A ideia negativa — “não faça” — não vence a ideia positiva — “faça”.

Neste momento, me lembro de um livro que li na minha infância. Ele se chamava “Pinote, o fracote, e Janjão, o fortão.” É um livrinho curto, mas ótimo, de Fernanda Lopes de Almeida e Alcy Linares, publicado pela Editora Ática. Compre para seus filhos. Compre para você.

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A história — e talvez o que eu diga a seguir seja um imenso spoiler desta fantástica obra infantil — narra um grupo de garotos liderado por Janjão, um menino fortão, que adora brincar de rei dos piratas. Todos que brincam com ele são seus marujos e devem obedecer às suas ordens, porque ele é rei. Todas. Se não, são punidos.

Janjão segue a história inteira aterrorizando os garotos e a vizinhança, até que, a certo ponto, satisfeito com seu reinado, ele começa a contar piadas para seus súditos rirem. Só que Janjão não tem graça nenhuma, então ele ameaça os outros para que riam, e eles obedecem. O único que não ri é Pinote, o fracote. Depois de uma nova ameaça, Pinote tem como resposta exibir um belo sorriso amarelo, e Janjão chega à conclusão de que ele poderia fazer Pinote rir de suas piadas, mas ele riria apenas com a boca: ele nunca riria com o pensamento.

Proibição é a infantil ideia de que você poderá contar uma piada e fazer com que alguém verdadeiramente possa rir com o pensamento.

Você pode proibir alguém de fazer alguma coisa, mas não pode proibí-la de ter uma ideia.

Essa é uma noção que, admito, é completamente assustadora.

Eu falo sério, não vou fingir qualquer superioridade aqui. Existem ideias que abomino, mas que as pessoas aceitam, e não posso mudá-las. Mesmo que eu consiga que sejam proibidos os seus efeitos físicos, sei que as ideias não vão desaparecer.

O que posso fazer — e todo mundo mais pode, é claro — é apresentar outra ideia, porque ideias são à prova de balas, podem ser revestidas por pensamentos, por sentimentos, por fé cega e por obsessões e compulsões, mas nenhuma ideia é completamente à prova de ideias.

Isso quer dizer que eu acho que não deveriam existir leis e punições? Claro que não. Queira ou não, um nível mínimo de proteção ainda existe por conta de certas leis, e várias das leis efetivamente proíbem algo, e pessoas podem ser protegidas por elas. Nem sempre, mas muitas vezes.

Mas eu creio que tenho alguma maturidade, pelo menos o suficiente para entender que essas proibições só estão tornando um inconveniente grande demais fazer as coisas que elas proíbem, mas que não impedem as vontades e pensamentos das pessoas que as fariam se não fossem esses inconvenientes.

Antes de finalizar, acho que preciso dizer com todas as letras, para deixar bem claro, especialmente em nossos tempos conturbados: eu acredito que qualquer ideia que considera qualquer ser humano inferior a outro — seja lá qual for a origem desse pensamento — deve ser efetivamente combatida. O que não muda o fato que eu sei que uma proibição é o que vai mudar essas palavras.

Eu sei que em um ambiente em que todos estão sob o controle da proibição, é impossível saber bem quem é que faria ou não faria o que é proibido sem que a pessoa expresse seus pensamentos — e ainda assim, como dependo de sua expressão, eu jamais saberei a verdade, porque a expressão pode ser tão verdadeira quanto o riso amarelo de Pinote.

Enquanto isso, eu coloco mais ideias no mundo, na esperança de que elas vençam as ideias que considero erradas, e absorvo outras ideias, para que talvez, um dia, eu pense que alguma das minhas é errada.

Para quem ama proibir, enquanto isso, eu reforçarei que você pode contar a piada e fazer minha boca rir, mas não pode fazer meu pensamento rir. E que por mais que tente, você não pode bater no meu pensamento.