A corrupção é a nossa sombra

Em meio ao cenário político caótico que nos encontramos, repetidamente surgem os questionamentos sobre motivações e sobre manifestações políticas, geralmente como o velho “Ninguém vai fazer nada sobre isso?” ou “Ninguém vai pra rua?”. O silêncio e a passividade geram questionamentos repetidos e ineficazes, mais como maneiras de apontar hipocrisias do que de efetivamente gerar mudança.

Ficamos assistindo alguma decisão absurda e prevendo manifestações que não acontecem, ou que, se acontecem, um grupo ou outro olha para os que se manifestam com olhares de julgamento e a certeza de que a causa que eles defendem é problemática, quando não simplesmente errada, factual e/ou moralmente falando.

“Não é sobre a corrupção, nunca foi”, dizem alguns, explicando as reais motivações das manifestações. Seria tudo sobre outros objetivos que teriam relação com conquistar objetivos políticos específicos a qualquer custo.

Eu discordo. Ou ainda, concordo em parte.

Eu acredito que, excetuando-se os políticos de dentro dessa equação — mais algumas pequenas legiões financiadas e influenciadas diretamente por eles — a maior parte das pessoas realmente quer o fim da corrupção. É verdade. Eles o querem sinceramente e verdadeiramente. Ainda que por vezes a definição de corrupção possa variar, eles querem.

O problema maior é que a corrupção é uma sombra. Ela é algo que sempre está lá, que pode até mudar de forma, mas que nunca irá sumir. É algo que conseguimos ignorar com facilidade, e algo que pensamos que todo mundo tem.

A corrupção é sombra no sentido que estamos tão acostumados com ela que passou a ser um pressuposto. Ela não é mais um fato, mas uma condição ou meio.

Acima de tudo, a corrupção não é sólida. Não conseguimos pegar na corrupção, apertá-la pelo pescoço, jogá-la na cadeia. Mas conseguimos apontá-la, entendê-la e, no geral, indicar onde é que está, quando visível. É por isso que é fácil “lutar” contra ela, mesmo sem fazer nada prático. É fácil se posicionar “contra a corrupção”, efetivamente sem demonstrar qualquer ação para fazer algo em relação a ela. Falar “sou contra a corrupção” é como falar “eu tenho uma sombra”. É verdade, mas não muda nada.

Quando partimos dessa mentalidade, acredito que fique mais fácil compreender o que acontece. Afinal, se todos são contra a corrupção, como é que ela persiste? Como é que que estamos tendo esta discussão?

Minha hipótese é a visão de uma recompensa. Ou a falta dela.

Explico: as grandes mudanças políticas dos últimos tempos sempre tiveram alvos muito específicos. Elas tiveram uma trama clara, com seus personagens e motivações. Tinham lados, coalizões, mocinhos e bandidos, ainda que cada um desses varie de acordo com alinhamento político.

Nós podemos sempre falar que o que fizemos ou fazemos é contra a corrupção, mas sabe-se muito bem que escolhemos algum tipo de corrupção quando vamos às ruas, quando fazemos um vídeo engraçadinho para compartilhar no Facebook ou WhatsApp, quando damos atenção a um comentarista político. Nós sabemos sobre quem é que são os fatos que estão sendo apresentados e quem estamos omitindo quando estamos apresentando os fatos. Nós temos alvos, métodos e visões de mundo. Nós temos alinhamentos políticos. Nós temos objetivos.

Em um cenário em que a corrupção não tem partido específico, ela deixa de ser o peso principal e são esses outros aspectos que importam mais. A água está no calcanhar de todos, e se vamos chutar na direção do adversário, sabemos que também vamos nos molhar, então nós começamos a olhar para o que consegue flutuar acima da água.

Não existe a manifestação “pura” contra a corrupção, por mais que ela seja um muro. E não faria sentido existir, mesmo. Não faria sentido — ainda que dê vontade — bradarmos ao céu contra a existência da corrupção como um todo e esperarmos que isso nos ajude e nos salve do mal, amém. A corrupção é feita de partes, e se tentamos atirar em todas ao mesmo tempo, não atingimos nenhuma delas em cheio. Nós sabemos disso, mesmo quando fingimos que não.

O que fazemos, então? Nós nos manifestamos quando podemos ver uma recompensa em agir em algum dos elementos da corrupção. Não estou falando em ganhar dinheiro — ainda que certamente tenha muita gente ganhando dinheiro às custas de revolta política — estou falando em ter um objetivo que reúna força motriz. E essa é a vantagem e o perigo, porque é quando deixamos de olhar para a sombra, para a água que está chegando ao umbigo.

Observe que todas as grandes manifestações políticas recentes tiveram objetivos muito claros: elas eram contra alguém, a favor de alguém, por um grupo específico, contra um grupo específico, a favor de um grupo específico, contra uma decisão específica, a favor de uma decisão específica ou uma combinação desses elementos. A recompensa era a remoção dos elementos indesejados e adição dos desejados. A corrupção é um pano de fundo, mas esses são os motivos.

Quando não existe a manifestação, invariavelmente há dois motivos possíveis: ou o público possível de adesão a essa manifestação não enxerga uma recompensa imediata e mensurável, ou há uma recompensa maior por não se manifestar.

O que torna tudo mais complicado, aqui, é que uma recompensa pode ser facilmente composta de conceitos subjetivos como o sentimento de adesão ou não a um grupo e/ou ideologia ou mesmo que “o outro lado” não “ganhe”. Muitas vezes, o orgulho de ver o outro lado perder é uma recompensa maior do que qualquer prejuízo garantido pela passividade frente a uma alteração social. É algo puramente emocional.

Apoiar o político que não se gosta, mas cujo plano é bom, se torna assim algo ruim porque ele é um “inimigo”. Apoiar o político de que se gosta, mas cujo plano é ruim, se torna assim algo bom porque ele é um “aliado”. A justificativa da corrupção pode surgir a qualquer hora igualmente para os dois, mas ela pesará muito mais para quem você discorda, mesmo que o que ele apoia iria efetivamente te ajudar.

Em um cenário político, o envolvimento emocional é tão grande que muitas vezes consideramos um objetivo maior levar um tiro na cabeça de um aliado do que arriscar que o inimigo tome a arma e atire em qualquer outro lugar — inclusive no problema.

Os políticos sabem muito bem disso. Seus apoiadores, também. Por isso eles sempre desenvolverão as recompensas de acordo com o que é mais interessante para eles, seja incentivar a queda de uma figura política, a aprovação de um projeto, ou a passividade contra qualquer ação corrupta, colocando como recompensa a paz, tranquilidade e estabilidade supostamente decorrentes da inação.

Por isso, lembre-se sempre que é conveniente fingirmos que “é tudo a mesma coisa” e “não tem jeito” e “vamos fazer o que?”, e falar“esses corruptos”, mas não dar nomes aos bois. Quando homogeneizamos a corrupção, lentamente derrubamos recompensas e aumentamos a sombra, tornando tudo mais distante e impalpável. Quando homogeneizamos a corrupção, nós não fazemos nada além de defender quem tem poder para cometer atos de corrupção.

Assim, entenda que uma manifestação que não faz sentido para você simplesmente não atende a uma recompensa que você enxerga ou considera válida.

Dentro dessa lógica, não estranhe quando não existir uma manifestação — simplesmente não existem pessoas enxergando recompensa o suficiente em fazer alguma coisa, ou simplesmente existem pessoas enxergando recompensa maior em não fazer nada. Aquele que se posiciona “contra a corrupção” mas mantém seu silêncio e inação, por mais que diga o contrário, efetivamente está em uma dessas categorias.

Se você enxerga a recompensa, torne-a visível. Organize as pessoas que enxergarem a recompensa. Mas lembre-se sempre: se um político ou qualquer lado de uma briga organizou uma recompensa para você, é bem provável que a recompensa seja muito mais emocional do que factual.