As Selfies Não São Minhas

Talvez você não saiba, mas existe uma guerra acontecendo.

Tudo bem, talvez “guerra” seja uma palavra forte demais. Um “embate”, talvez? Um “confronto”? Estou pensando muito na palavra certa para definir este conflito porque são as próprias palavras que são a base dele.

É a oposição entre dois posicionamentos sobre como línguas devem funcionar: o Descritivismo e o Prescritivismo.

Basicamente, o “Descritivismo” é uma forma de descrever uma língua gramaticalmente que busca entender como as pessoas falantes de uma língua a utilizam e descrevê-la de acordo. O “Prescritivismo” é outra forma que prega o contrário — eles utilizam-se de normas para dizer o que uma língua deve ser e como as pessoas devem utilizá-la.

Essa oposição se manifesta de várias maneiras, desde meras discussões e estudos acadêmicos até dicionários e utilizações práticas para não-linguistas.

Eu amo línguas, amo escrever e amo comunicação em geral. Minha formação é de publicidade, mas tenho amor à linguística, ainda que meu conhecimento nessa linha de teorias não seja muito superior ao conhecimento de um turista sobre um país estranho onde passeia. Assim, eu pensei por bastante tempo sobre essa briga e há algum tempo escolhi o lado do Descritivismo, tanto porque penso que ele faz mais sentido, quando porque ele reflete meus valores morais básicos.

Ficou tudo meio sério subitamente, né? Mas é isso mesmo.

Vou forçar a barra — eu realmente acho que essa é uma briga que não para em palavras. Ela é uma briga de valores e da maneira como enxergamos mudanças. Aqui, a palavra “mudança” pode ser trocada por “progresso” e/ou “evolução”, dependendo do seu ponto de vista.

As regras gramaticais frequentemente seguem o que é estabelecido por um grupo e nem sempre representa a realidade da língua falada. Isso acontece também com tudo mais que muda.

O problema é que a mudança é estranha, assustadora e muitas vezes ela tropeça bastante e até mesmo volta atrás antes de se acertar. Mas não existe nada no mundo que não mude, por mais doloroso que seja o processo. Os prescritivistas podem falar o que quiser, mas eu acredito que essa é uma batalha perdida para eles. Ainda que algumas palavras sejam marcadas como gírias, ou tenham indicações de usos irregulares, elas já constam em dicionários. E nós, como sociedade, temos muito o que aprender com essa luta e com esse resultado.

A lição maior de entender este embate linguístico ficou quando eu descobri que a mudança às vezes é tão sorrateira que toda nossa convicção pode falhar no momento em que ela não agir da maneira que desejamos. Vamos entender:

Uma vez identificado como um descritivista, eu passei a ver as línguas e a utilização que as pessoas fazem delas como algo divertido e interessante. Passei a ver a facilidade como tratamos com condescendência qualquer variação da norma culta, enquanto aceitamos regionalismos que pouco diferem disso. Me maravilhei com brigas internacionais pelo retorno do reconhecimento de linguistas à adoção do pronome “they” (“eles”/”elas”) como um termo singular de gênero neutro. Tive um apreço especial pela velocidade da evolução da linguagem na Internet, passando adotar “Olar” como uma expressão de uso corrente (ainda que em contextos informais) e vendo outras com “mim acher” não com condescendência, mas com curiosidade.

Só que haviam dois exemplos que sempre me pegavam e tentavam me puxar à minha educação básica e a um aparente consenso social em relação ao prescritivismo: o primeiro era a expressão “literalmente” e o outro era a expressão “selfie”.

Desde que me conheço por gente, o termo “literalmente”, talvez pelo som agradável quando exclamado em meio a uma conversa ou por uma percepção de efeito hiperbólico, era usado de duas maneiras: tanto para significar “literalmente”, ou seja, “de modo literal”, quanto para significar seu completo oposto — “figurativamente”. Enquanto os prescritivistas continuavam corrigindo os falantes a cada uso que viam como errôneo, os descritivistas perceberam o óbvio — as pessoas agora consideravam que “literalmente” significava duas coisas diferentes, mesmo que fossem opostas.

Isso “literalmente” explodiu a cabeça de muitos prescritivistas. A minha cabeça também, de certo modo, ainda que eu me considerasse descritivista. Só que exatamente por isso eu comecei a pensar e… bem, eu tive que ceder. Eu percebi que, claro, não preciso concordar com tudo que uma linha ideológica pensa porque me alinho com ela, mas existem coisas básicas que, se eu não concordar, eu automaticamente me torno hipócrita em relação a outras.

Eu percebi que por mais que minhas mãos, boca, ouvidos, olhos e mente não estivessem acostumados a usar ou compreender “literalmente” dentro desse aspecto, eu não poderia falar com convicção sobre o respeito a qualquer outra novidade linguística se tivesse algum apego a essa forma que começava a se tornar naturalmente antiga.

O tempo passou e, lentamente, comecei a metabolizar essa ideia. E vou dizer que ela ainda não desce totalmente. As aspas em “literalmente” ali em cima não foram apenas para fazer uma piadinha sem graça, mas porque parte de mim ainda tem resistência a usar a palavra e ser percebido como “errado”.

Mas enfim, vamos à palavra “Selfie”. Essa expressão denomina um autorretrato fotográfico, geralmente com a utilização de uma câmera de um dispositivo móvel. Em 2013, mesmo ano da matéria acima sobre “literalmente”, ela foi considerada a Palavra do Ano pela Oxford Dictionaries. A partir disso e por muitos outros meios, ela se popularizou por todo o mundo e agora qualquer um, por mais desconectado que seja de tecnologia ou cultura jovem sabe o que é e provavelmente já tirou várias selfies.

Só que no meio desse processo, é claro que essa palavra, como qualquer outra, não continuou estática. A expressão “selfie” já está começando a mudar, sendo adotada por vários indivíduos como uma maneira de dizer “foto”. Pede-se que pessoas tirem selfies umas das outras, tira-se selfies de objetos sem a participação de quem fotografa e já vi empresas recomendando, por exemplo, que seus usuários “tirem selfies” de documentos para enviá-los.

Isso, como devem supor pelo exemplo anterior, soou estranho para mim. Ao perceber, me vi pronto para falar contra a utilização “errônea” da expressão da mesma maneira e com a mesma intensidade e paixão que um padre que prega contra a corrupção moral da sociedade. O problema, porém, era exatamente esse. Eu percebi que eu não queria ser um padre. Nem um coroinha e nem mesmo um fiel.

Eu percebi, então, — ou talvez eu tenha percebido novamente — que é muito mais fácil aceitarmos uma mudança que já passou, ainda que com uma resistência inegável, do que aceitarmos uma mudança que se encaminha. Mas eu percebi que nós devemos estar prontos para isso. Se há um imperativo moral aqui, é que temos que aceitar e respeitar a mudança. Se não concordamos, não precisamos seguir essa tendência, e tudo bem. Mas se batermos de frente, nós somos os responsáveis por gerar a resistência, e essa resistência tem pouca diferença com a daqueles que se colocam à frente do progresso.

Eu percebi, acima de tudo, que também é mais honesto e menos hipócrita de nossa parte que nós repliquemos essa ideia.

Falando assim, parece que falo de algum movimento revolucionário, do começou ou fim de uma grande resistência, da desistência de uma luta. Bem, na prática, é algo assim, mas não é nem de longe tão grave, já que nós sempre aceitamos isso. Duvida? 

Basta, por exemplo, um estudo básico de francês para identificar que língua portuguesa não teria “garçom”, “metier”, “berço”, além de outras muito mais óbvias que já se integraram ao nosso vocabulário e que, um dia, já foram “erradas”. Sem falar da naturalidade que reconhecidamente usamos “download” e até adicionamos um significado a mais em “baixar” para adequar a nossa língua a essa prática.

A mudança da língua não é imoral. A maior parte das mudanças que as pessoas fazem não são imorais. Mas nós temos uma facilidade muito grande de atribuir moralidade a coisas cujo uso não necessariamente está ligado à moral. Não podemos deixar que o desejo do uso correto de uma língua se torne uma cruzada, especialmente porque não há um uso correto, do mesmo jeito que qualquer moralidade que possamos discutir em torno disso e de outras realidades é relativa e só existe em nossas cabeças.

Isso não quer dizer — e explico de maneira bem clara porque sei que nem todos nós interpretamos palavras da mesma maneira — que estou falando que podemos instantaneamente usar palavras e uma lógica de língua até agora inexistente e esperar que todos a sigam, do mesmo modo que não podemos esperar que algo que não seja aceito pelo que se entende de nosso consenso de moral seja aceito de imediato.

Não podemos tratar isso como uma guerra, mesmo que alguns tratem assim, especialmente porque não é o tipo de coisa que o uso correto de pronomes, o uso palavras difíceis ou o uso correto da crase irá evitar. Nós, como humanidade, nos comunicamos há milênios. O português é falado há séculos. Só que nem a nossa própria versão de português brasileiro é o mesmo em seus quinhentos e tantos anos de existência.

Eu não vou usar a palavra “selfie” fora do significado que me parece certo que ela tenha, mas se ela vir a substituir a palavra “fotografia” eventualmente, sem dúvida terei que usar “selfie” no significado que atualmente me parece errado para que eu possa me comunicar. Isso é o mínimo que tenho que fazer como uma pessoa que usa palavras e que as ama. Isso é o mínimo que tenho que fazer como uma pessoa que busca o convívio saudável e não vê a resistência à novidade em qualquer âmbito como uma virtude. Isso é entender que as coisas mudam, e que tudo bem.

Se as pessoas mudarem o significado da palavra o suficiente e “fotos” se tornarem “selfies”, eu não terei o que fazer. As selfies não são minhas, e continuarão se chamando de selfies, porque não fui eu que as tirei.

A primeira pessoa a falar “você” talvez tenha sido muito julgada pelos usuários de “vossa mercê” (ou de “voismicê”, ou outras variações). Hoje em dia, ninguém sabe dizer com certeza quem foi o original. O uso não virou um crime a ser registrado pela história. E eu e você usamos “você”.

Na próxima vez que alguém fizer algo de um jeito diferente — não só palavras, mas qualquer coisa, qualquer coisa mesmo — , pense na primeira pessoa que falou “você”. E pense que a sua resistência pode te parecer como um princípio moral inalienável, mas que dificilmente é.