Café Descafeinado

Recentemente me dei conta de um preconceito meu: café descafeinado.

Ao fim dessa frase, já consigo ouvir as vozes da multidão de amantes da cafeína me garantindo que esse é um dos preconceitos mais nobres (se é que há tal coisa), que apenas mostra que sou uma pessoa confiável, honrada e/ou de gosto refinado. Ou que simplesmente sou uma pessoa com bom senso.

Ou que todas as outras pessoas que optam por café descafeinado, exceto em caso de extrema necessidade, são monstros horríveis que provavelmente comem criancinhas no jantar, ou são ignorantes que não conseguem nem mesmo colocar os sapatos nos pés certos ou completar uma frase inteira fazendo algum sentido.

E em algum ponto do meio dessa tão real multidão de opiniões imaginárias, surge uma voz que solta uma frase que já ouvi milhares de vezes.

“Café descafeinado não faz sentido! É tipo cerveja sem álcool!”

Nesse momento, todas as vozes imaginárias concordam efusivamente, balançando a cabeça, rindo e dando tapinhas congratulatórios nas costas da voz que fez a comparação repetida tantas vezes por tantas vozes diferentes.

Enquanto isso, estou franzindo minha testa e dando um gole no meu café (com cafeína) e me dando conta, como todas as vezes em que tomo café, de que eu gosto muito de café.

Então eu leio de novo a frase acima e noto uma coisa extremamente óbvia sobre ela.

“(…)eu gosto muito de café.”

Nada mais justo, certo? Mas observe que essa frase diz algo muito específico. Que eu gosto de “café”. Ela não fala nada sobre “cafeína”.

Eu gosto muito do gosto, do cheiro e claro, gosto dos efeitos. Sim, eu gosto de café e gosto de cafeína. O bebedor de café que nunca pensou em “tomar um café para acordar” alguma vez na vida, que atire a primeira pedra. Mas eu me dei conta de uma coisa simples — eu tomaria café mesmo se café não tivesse cafeína. Café pode ser um combustível para muita gente, mas pode ser algo que se gosta de tomar. Para mim, ele é as duas coisas. Só que as pessoas não estranham se eu falar que é só porque eu gosto de tomar, desde que ele tenha cafeína.

De tanto ouvir as pessoas falarem que “café sem cafeína” não é café “de verdade“, eu pensava assim também. Mas… isso não é estranho? E isso não acontece sempre com outras coisas.

A maneira de observar esse efeito é fácil, é só levar para qualquer outro alimento que tenha “efeitos colaterais” — ou seja, qualquer um. Enquanto muitas vezes nós comemos coisas exatamente pelos efeitos que queremos que elas causem (“bananas tem potássio, evitam cãibras!”), especialmente quando estamos falando de algo que comemos ou bebemos por prazer, nós não estamos pensando nos efeitos. E tudo bem.

Eu frequentemente tomo leite com chocolate, mas não estou tomando exclusivamente porque penso que preciso de cálcio, açúcar e gordura. Mas sim porque eu gosto muito de leite com chocolate e ninguém me julga por isso (no máximo por ser um adulto que toma leite com chocolate, mas aí é outro tipo de julgamento).

É aquele velho sonho de crianças e de adultos de que alface, chicória e coisas do gênero deveriam ter gosto de chocolate, ou água ter gosto de Coca-Cola. É o reconhecimento de que queremos coisas com gostos que nos agradem e ponto final.

De volta ao café — eu gosto de café porque café tem gosto de café. Como um bom bebedor de café, já experimentei diversas variedades e maneiras de preparo. Algumas eu gostei mais, outras eu gostei menos. Eu tendo a tomar apenas as que gosto mais.

E claro, sou um bebedor de café consciente. Eu sei que se tomar café mais para o fim do dia, a cafeína irá afetar minha qualidade de sono. Eu sei que se tomar mais que três xícaras pequenas por dia, o café pode “roubar” cálcio do meu organismo. Eu sei até os horários de certos ciclos corporais para que a cafeína, a longo prazo, não perca o efeito no meu organismo. Com o tempo, meu consumo diário de café foi adequadamente regulado para considerar esses fatos.

Mas por vezes, acabo de jantar e minha maquininha de café espresso que funciona com uso de cápsulas — aquela lá, você sabe de qual estou falando — fica me olhando, me seduzindo e eu realmente gostaria de tomar uma xícara.

Recentemente comprei um pacote de cápsulas com preço promocional e, dentre elas, estavam cápsulas de café descafeinado. As cápsulas descafeinadas ficaram guardadas junto com as outras, enquanto eu refletia sobre trocá-las com uma amiga que atualmente evita cafeína por estar amamentando.

Mas alguns dias atrás, a vontade de tomar café depois do jantar era grande. Olhei para a cápsula, ela olhou para mim. A luz incidiu em seu plástico avermelhado, como quem diz “Vamos?” e eu suspirei, tentado.

Aquilo ia contra meus princípios. Como assim eu ia me render àquele sacrilégio? Como assim, eu iria tomar um descafeinado? Eu preferia ficar SEM TOMAR CAFÉ a tomar um “café de mentira”.

Então, no segundo seguinte, eu me dei conta de que não, eu preferia tomar um “café de mentira” porque eu queria “tomar um café” e não “tomar uma cafeína.

Liguei a máquina, coloquei a cápsula e em alguns segundos eu tomava um delicioso café quentinho que, convenhamos, eu não saberia que era descafeinado se a cápsula não me indicasse.

Este texto, se você ainda não notou, não é bem sobre café, com ou sem cafeína. Ele é sobre as coisas que aceitamos como são porque nos disseram que são como são e nós não questionamos porque questionar dá muito trabalho. Aquela xícara de café me mostrou algo que era óbvio, algo que todos nós sempre exacerbamos, só para no segundo seguinte ignorarmos: é muito mais legal fazer coisas legais. É muito mais legal fazer coisas que gostamos.

É muito mais legal tomar o café “de mentira” se você quer tomar um café, do que não tomar nenhum. Você não está ferindo ninguém com isso. Não existe algum princípio ou honra absurda a ser respeitada. Tudo bem fazer uma coisa que pode não ir exatamente com a imagem de mundo dos outros, se ninguém se dá mal por isso.

E é muito mais legal quando não julgamos a visão de mundo do outro, porque é desse julgamento que nascem ideias malucas como “café de mentira” – deixo os desdobramentos mais graves e óbvios aos leitores.

Morreu aí meu preconceito com café descafeinado, mas não sem antes ouvir mais uma vez a frase “é a mesma coisa que cerveja sem álcool”!

E aqui eu poderia julgar – e condenar, mesmo que verbal ou mentalmente – quem fala assim, por usar a bebida de maneira utilitária, mas não faria sentido.

Acho que todos ficariam mais felizes com uma xícara de café ou um copo de sua bebida de preferência, com ou sem o que quiserem, mas com certeza sem julgamento.

Leitura complementar — a Marie Declercq fez um artigo bem legal para a Vice sobre ir para baladas sem beber. Ela explora os lados mais práticos do processo, mas mesmo se você não se interessar nisso, vale a leitura especialmente quando ela fala de todo o costume que existe em relação ao álcool.