A Última Humana Estava Doente

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Talvez vocês já saibam, mas eu gosto muito de escrever. E escrever me ensinou muitas coisas sobre muitas outras coisas, especialmente sobre como vemos o mundo e como agimos dentro dele.

Eu escrevo todo tipo de coisa, mas me especializo em ficção. Eu escrevo coisas longas, coisas curtas e coisas nem curtas nem longas. Cada um dos tamanhos, formatos e estilos me ensinou coisas diferentes, mas recentemente eu descobri algo estranho.

Há algum tempo eu escrevo e compartilho histórias curtas. Existem desafios muito específicos nesse formato, para que ele dê certo. Você deixa de se apegar a certas construções de frases, certas palavras, e aprende a trabalhar com um “espaço negativo” no texto. Por vezes, o que você omite é muito mais pesado do que você escreve, e ainda que não tenha dominado isso, posso dizer que estou aprendendo.

Assim, conforme fazia histórias curtas, comecei a aumentar o desafio. Fiz histórias de 7 palavras, todas com a condição de serem as últimas palavras antes da morte de um ou mais personagens, fosse por uma narração ou por um diálogo. O “e morreu” ficava sempre implícito em cada caso.

Recentemente, tentei uma outra coisa: histórias com até 5 palavras, todas com temas terríveis. Mortes e tragédias de todo tipo, todas em até 5 palavras. Entendo que fazer uma história “forte” com poucas palavras é mais difícil. O uso do que fica implícito é mais importante.

Em uma manhã de segunda-feira, pensei em mais uma dessas histórias. Ela era assim:

“O último humano estava doente.”

Eu imediatamente gostei muito dessa história. O uso de “último” já deixava implícito que havia acontecido algo para acabar com toda a humanidade, deixando apenas um. Ou que, talvez, esse humano fosse um experimento em um laboratório, supervisionado por outros seres não humanas, e fosse o último. Ou quem sabe um enredo sobrenatural, sobre vampiros e humanos comuns. Havia muitas possibilidades, e todas elas eram ruins para o humano em questão, culminando pelo fato de que ele era o último, portanto podemos imaginar que estivesse sozinho, e que estava doente, representando talvez, pelo seu fim, o fim de toda a humanidade.

Mas pensei numa possibilidade, na hora de digitar esse texto. Eu fiz um teste:

“A última humana estava doente.”

Eu me senti imediatamente mais incomodado. Eu tentei pensar por que é que isso me incomodava. A resposta foi óbvia, sem qualquer surpresa: nós estamos acostumados a certos gêneros em certas palavras.

“Pessoas” é sempre feminino. “Humano” é sempre masculino. Mesmo o “ser humano”. A língua tem essas essas coisas engraçadas, e é normal. É uma norma linguística do português.

Pensei, então, em como poderia deixar esse conto com gênero neutro. “Ser humano” até funcionaria, mas a contagem de palavras ficaria errada, passando das 5 que eu havia proposto.

Em inglês, seria fácil:

“The last human was sick.”

Mas mais do que sobre gênero de palavras, quero discutir outra coisa aqui. Não, meu texto não é sobre usarmos termos no feminino ou criar um padrão neutro mais neutro do que o masculino — ainda que pudesse abrir algumas oportunidades literárias interessantes. Também não quero falar sobre representatividade, sobre personagens (e especialmente protagonistas) mulheres em obras literárias — ainda que seja também um tópico muito interessante.

Eu estou falando de escrita em um ponto anterior a representatividade e além de língua: afinal, por que é a construção me incomodava, daquela forma? Por que é que meu “último humano” não podia ser uma “última humana”? O que essa situação significa para a escrita, em nível amplo e individual?

Eu realmente passei um tempo pensando em motivos pelos quais ele não poderia ser uma mulher e nenhum deles foi muito mais longe do que velhos clichês sobre uma teórica falta de capacidade de sobrevivência de mulheres. No fim das contas, nenhuma das possibilidades que eu pensei para o desenvolvimento do roteiro a partir dessas 5 palavrinhas fazia diferença se fosse um homem ou uma mulher.

Porém, a partir do momento que eu levantei a possibilidade de ser um personagem com gênero, consegui pensar em desenvolvimentos específicos para homens e para mulheres. Na minha ficção, pode ser que o último humano (homem) fosse o último por uma doença que havia matado todos que tinham o cromossomo Y. Pode ser que a última humana estivesse grávida e sua criança seria o salvador do universo. E estes são apenas dois exemplos rasos, baseados exclusivamente em biologia, passíveis de expansões imensas.

Existem momentos em que a linguagem e a escrita se esbarram em limitações diversas, especialmente no ponto em que o abstrato e imaginário tem que se tornar real e a expressão não cabe bem. Entendo que uma das funções da escrita pode ser, mesmo que apenas pela própria existência, apresentar a discussão.

O último humano pode ser um homem? Pode. Mas também poderia ser uma mulher. A discussão podia ir até mais longe e eu poderia omitir o artigo, forçando o gênero neutro no meu microconto e criando algo como “Último ser humano estava doente”, e tudo bem. Pessoalmente, optei por não utilizar esse formato, temendo que a inovação soasse como erro, mas se quisesse, poderia ser e isso por si só já poderia gerar uma nova discussão.

De qualquer maneira, gostei tanto de minha discussão interna, que decidi fugir do comum e aplicar gênero onde talvez muita gente nem notasse que havia.

A versão final do conto ficou “A última humana estava doente.”