Punição Adequada

Eu sou um pacifista. Isso significa que sou contra a guerra. Isso também significa, de certos pontos de vista e entre muitas coisas, que eu não acho que ninguém deve matar ninguém, nem mesmo como punição. Mesmo que a pessoa tenha matado pessoas, eu não acho que ela deve morrer. Talvez você possa se questionar porque eu penso assim, e eu poderia dar muitos argumentos para isso, escrever muito, conversar muito, porque eu já pensei muito sobre esse assunto e sobre outros correlatos.

Mas eu não quero me alongar. Eu quero falar da simples ideia de que nós não deveríamos, por lógica, querer matar qualquer pessoa. Vamos lá.

Se você está lendo este texto e começou — seja na caixa de comentários, no Facebook, na sua cabeça, na vida real ou em qualquer outro lugar — com o discurso de que “estou defendendo bandido”, eu peço que respire fundo e continue lendo. Se estou defendendo alguma coisa aqui, é a lógica, a lei e o respeito básico que devemos a esse assunto, se queremos nos considerar uma sociedade minimamente coerente. Se isso significar que, em algum ponto, em alguns pontos de vista, eu efetivamente defenda algum bandido, que seja.

Já ouvi diversas vezes pessoas afirmarem que “bandido bom é bandido morto”. Se entrarmos na discussão do que faz um bandido, em qualquer sentido, a discussão logo fica bem mais tênue do que a maioria de nós gostaria de admitir. Você está falando de qualquer bandido? Se sim, está pronto para morrer quando ultrapassar a velocidade em uma via ou quando errar (ou omitir) informações no seu imposto de renda? Ou você está falando que o bandido que deve morrer é aquele que mata?

Vamos para o lado mais simples. Se nós queremos sugerir que alguém seja morto por qualquer motivo, incluindo por ter matado alguma pessoa, nós temos que considerar algo antes disso: a nossa lei permite tal coisa? Porque se não permitir, nós efetivamente sugerimos uma ação contra a lei para punir alguém que violou a lei. Mas isso é relativo, certo? Este argumento não vale para locais em que a lei prevê que pessoas podem ser punidas com a morte.

No caso, no Brasil, a lei só prevê pena de morte em situações específicas de guerra. No resto do tempo, não. Você pode então argumentar que a lei é branda e que isso deveria ser efetivamente mudada. Você tem o direito de achar isso. Mas isso realmente faz sentido?

Se quisermos ser pessoas religiosas, a ideia de matar pessoas é impraticável. Vamos pensar em uma coisa: a grande maioria das religiões defende a vida. No caso, religiões cristãs, uma das principais influências culturais do país (e do ocidente como um todo), representam 86,6% da população. Ou seja, para começar, se você faz parte dessa maioria de religiosos, dá de cara com um “não matarás” nos 10 Mandamentos. Observe que não é “não matarás um inocente” nem nada que possa ser lido como abrindo uma exceção à pena de morte. É “não matarás”. A ideia de aceitar que pessoas matem pessoas é problemática para qualquer um que siga qualquer outra norma da Igreja. Não adianta fazer um casamento belíssimo, sair da igreja e defender que pessoas sejam mortas. Religiões não são self-service, elas são pacotes completos.

Mas digamos que você não seja uma pessoa religiosa, ou não se importe com esta parte da religião. Você pode argumentar que uma mudança dessa lei geraria medo. As pessoas teriam medo de morrer, portanto não cometeriam crimes. Este é um ponto complicado, porque as pessoas não funcionam assim. Nos EUA, por exemplo, estados que ainda tem a pena de morte não pararam de ter a pena de morte, simplesmente porque os crimes que geravam esse tipo de punição continuaram acontecendo. Se o medo gerado fosse o suficiente para gerar mudança, a lógica aponta para o fim de muitos crimes e, enfim da necessidade da pena. A discussão sobre a efetividade tem idas e voltas há anos, o que me diz que, no mínimo, faz pouca diferença. Ou que, como sugerem cada vez mais estudiosos, efetivamente não faz diferença na redução da criminalidade.

Colocando simplesmente: você deixou, ou pessoas que você conhece deixaram de levar multas de trânsito porque elas existem? Você pode argumentar que passou a tomar mais cuidado, mas meu ponto é outro: as multas não servem para impedir a existência de infrações, apenas para reduzí-las e para que sejam gerados mecanismos corruptores para evitar as multas e/ou pontos na carteira.

Eu acho que como qualquer proibição ou lei, a existência de uma punição, ainda que seja a punição máxima, não é incentivo o suficiente para evitar que o fator causador da punição aconteça.

Você talvez esteja pensando algo como “mas é diferente”, e é mesmo, mas a comparação não é impossível. Você talvez esteja pensando algo como “mas as multas seguem uma lógica própria que visa lucro e/ou burocracia acima de praticidade”, e isso é exatamente onde eu quero chegar: se nós concordamos que algo simples como multas passam por critérios extremamente falhos, além de todas as outras oposições que tenho à ideia, me soa irresponsável considerar que nosso sistema legal esteja pronto (ou que algum dia esteja pronto) para algo do tipo.

Você realmente acha que um sistema em que pessoas são presas injustamente comportaria algo como a pena de morte? Ou ainda, em um sistema em que pessoas NÃO são presas por crimes que cometem por falhas e/ou corrupções do sistema, você realmente acha que quem irá morrer são os criminosos mais “importantes”? Eu penso que não.

Mas o mais básico para mim, a primeira coisa que penso, mas que por ser a mais subjetiva eu deixo mais para o final, é que não acredito que temos o direito de decidir o valor de uma vida humana.

Quando falamos que alguém merece a morte por alguma coisa, geralmente é por matar uma pessoa. É seguro dizer que matar uma pessoa é o crime mais grave possível, superado apenas por sua repetição. Para mim, diz muito que aceitemos que a morte justifique morte, porque efetivamente estamos falando que reconhecemos o valor de uma vida humana e colocando a punição como o “preço” equivalente.

Quando dizemos que alguém perdeu o direito à vida por tirar uma vida, o que acontece quando decido que devem tirar a vida dessa pessoa? Por que o meu direito se torna inalienável, simplesmente porque a outra pessoa cometeu aquele assassinato fora da lei enquanto o meu é dentro da lei? Nesse caso, a aceitação disso é contraditória.

Sem falar que a decisão de matar alguém implica que essa pessoa nunca poderá mudar. Eu realmente acredito que as pessoas tem dificuldade de mudar. Mas eu não acredito que ninguém muda. Quando decidimos que alguém deve morrer porque não há como essa pessoa mudar, o que isso diz de nós? Que nos achamos superiores e que o poder de mudança é só nosso? Ou que reconhecemos que ninguém muda, nem nós mesmos, por isso não há outra saída? Nos dois casos, se você acha que é superior aos outros nesse nível, ou se você acha que nunca muda, eu confesso ter um pouco de medo de você.

Todas as nossas leis prevêem a capacidade de mudança. Isso fica evidente em infrações de trânsito. Mesmo com o número imenso de multas que temos no país, pontos podem ser transferidos e ainda que habilitações possam ser perdidas, nós podemos recuperá-las, ainda que depois de um tempo. Alguém que cortou indevidamente uma árvore paga multas e deve plantar outras árvores. São punições, mas todas punições envolvem a capacidade de recuperação, retribuição e mudança.

Talvez você possa considerar que sou otimista, que sou sonhador, que falo essas coisas porque estou desconectado do mundo real ou “porque não aconteceu com alguém que você conhece.” Veja, se nós estamos falando de “punição”, “leis”, “merecimento” e “culpa”, nós já estamos tratando de assuntos abstratos, subjetivos e desconectados do mundo real em boa parte, ao menos até o momento de suas manifestações físicas. Nós somos obrigados a discutir a teoria ao máximo.

Sem falar que o argumento “é porque não aconteceu com você” também não faz sentido, pois afinal, você está me dizendo que é justificável agir contra a lei desde que eu esteja com ódio ou raiva de alguém. Você está me dizendo que eu iria mudar de ideia se alguém que eu conheço tivesse sido vítima de um crime grave, mas isso é absurdo, por dizer que alguém que não está em seu estado mental normal deve ser acatado. Você está me dizendo, então, que o criminoso que agir com ódio contra alguém e cometer um homicídio também está certo? Não, eu não opero com ódio.

A partir do momento que aceitamos que nosso ódio ou qualquer sentimento defina qualquer decisão sobre vida ou morte, nós somos igualmente criminosos. Leis não tem sentimentos, então não importa quantos sentimentos eu tenha em relação a uma questão, eu não posso me permitir usar dos meus sentimentos como fator de decisão para algo assim. Do mesmo modo, se alguém que eu gostasse cometesse um crime terrível, mesmo que eu quisesse que a pessoa não fosse punida, eu teria que esperar que ela fosse.

As leis foram feitas para refletir o que pensamos como sociedade. Elas podem, sim, mudar. Mas é complicado pregarmos um valor à vida constantemente e desejarmos no minuto seguinte a morte de alguém. É hipócrita.

Se você quer contar com a pena de morte como uma punição, eu também não vejo muita vantagem. Pense bem: o punido é apenas removido. Ele perde agência e responsabilidade sobre o que fez.

Como eu disse antes, eu acredito que todos os seres humanos tem a capacidade de mudar. Se você acredita nisso também, garantir que a punição não seja o fim da vida dessa pessoa permite essa chance. Se você não acredita que pessoas podem mudar, você efetivamente está anulando a punição, pois está dando a saída mais fácil ao criminoso. Você pode argumentar que qualquer vida é superior à morte, mesmo uma vida de privações na prisão, mas a efetividade dessa punição se torna mais vaga, por certo ângulo. “Você fez essas coisas ruins, e agora nunca mais terá que lidar com elas ou qualquer outra coisa.”

Esses são só alguns dos motivos. Você pode não concordar, mas eu espero que pense. Eu espero que pense e, na próxima discussão sobre qualquer crime, sua reação não seja o simples desejo de morte, quase como um reflexo. Vamos exercer esse respeito à vida que gostamos tanto de falar de temos.