O que faz uma família — #NossaFamiliaExiste

Lilo & Stitch — "Ohana quer dizer ‘família’ e ‘família’ quer dizer ‘nunca abandonar ou esquecer"

Lilo & Stitch — "Ohana quer dizer ‘família’ e ‘família’ quer dizer ‘nunca abandonar ou esquecer"

Com essa história recente do chamado "Estatuto da Família", eu andei pensando muito.

Lembrando aos esquecidos ou desinformados: o estatuto reafirma a velha definição de família como a união entre um homem e uma mulher. E filhos, caso tenham.

Para mim, a definição é simplista e absurda, mas decidi fazer algo que gosto de fazer com frequência — eu tentei me colocar no lugar de quem pensa de modo contrário. Não é um exercício fácil.

Meu núcleo familiar é constituído pelo que as pessoas chamam de “Família Tradicional” e, pelo meu gênero e orientação sexual, provavelmente formarei uma família no mesmo molde. Mas sou da opinião de que as pessoas devem ter o máximo possível de felicidade e que ninguém tem direito de se meter na vida dos outros. Ainda assim, me esforcei e entrei de cabeça no exercício.

Logo, saí dele com algumas ideias. Tentei olhar para elas, mas de fato nenhuma delas aguentou muito tempo de questionamento. Então eu decidi expor aqui essa conversa interna, mais alguns argumentos que achei com um pouco de pesquisa.

Vale um adendo, antes de qualquer coisa: aparentemente, a mudança da lei não ocasionaria coisa alguma, legalmente falando. Como diz o advogado desta entrevista, nenhuma família seria desconsiderada e nenhuma união seria desfeita com base na lei. O problema é o preconceito que isso pode acarretar, bem como a proteção para preconceitos e um ataque à já ameaçada laicidade do Estado.

Aguentem firme que serão alguns momentos estranhos de suas vidas. Eu reuni 10 argumentos. Talvez existam outros, mas este foram os principais que consegui pensar ou encontrar por aí:

1- "A definição de família é parte da constituição/das leis e por isso devemos respeitá-la/respeitá-las."

Este argumento é usado como uma cartada contra qualquer discussão e, de fato, é uma das poucas que faz algum sentido por tempo o suficiente para entrar em discussão. Porém, é fácil nos lembrarmos que a constituição, bem como qualquer lei, é feita para o povo e pelo povo, ao menos idealmente. A partir do momento em que o povo fala que não a quer, em um Estado democrático, a conversa — e eventualmente a mudança — deve ocorrer, não?

Isso sem contar, claro, que a lei é algo antigo, que reflete outros tempos e preconceitos. Pode dar trabalho mudar? Claro que pode, mas até aí, a pessoa que utilizar este argumento, pela mesma lógica, não pode desejar a mudança de qualquer outra lei.

O advogado citado no link acima, Dr. Frederico Oliveira, lembra também que, no final das contas, a constituição não é só isso e que qualquer projeto que altere o que as pessoas definem individualmente como família e complique a convivência delas deve ser considerado anticonstitucional. Mais especificamente, ele diz que

De outra forma, em caráter vinculante e com efeito para todos, também será cabível uma ação de controle de constitucionalidade para determinar a anulação, extinguindo os efeitos da lei que nasceu com vício insanável de inconstitucionalidade, por afronta direta aos princípios da igualdade, da segurança jurídica, da liberdade, da cláusula de proibição de discriminação e da dignidade da pessoa humana, conforme já enfrentou a nossa corte suprema ao reconhecer a união homoafetiva como entidade familiar.

Puramente pelas leis, então, creio que o argumento está acabado. Vamos a outro ponto, então?

2- "Minha religião diz que…"; "Minha filosofia diz que…"

Ninguém se importa com o que sua religião diz. No máximo, pessoas da sua religião e, por vezes, nem ela. Idem para filosofias.

Não vale a pena nem entrarmos nem no caso a caso de livros sagrados ou ensinamentos religiosos, é muito mais simples: se uma pessoa não é da sua religião, ela não deve seguir os preceitos da sua religião. E você não tem direito, legalmente ou de qualquer outro modo, de utilizar sua religião contra ela de qualquer forma.

E uma coisa interessante, que as pessoas esquecem: isso também vale mesmo que você seja uma maioria religiosa. O Estado não possui religião, ainda que tenha uma inegável influência cristã.

3- "Você só diz isso porque quer defender minorias!"

Na verdade, ainda que apoie diversas causas de minorias, o Estatuto traz problemas para todos os moldes possíveis que se classificam na palavra, mesmo ignorando por um momento as famílias LGBT.

Pense bem: você não chamaria de família uma criança criada por um pai solteiro ou por uma mãe solteira? Pois aqui não há união entre homem e mulher.

"Mas a criança foi fruto da união entre um homem e uma mulher!"

Ignorando outros complicadores que contradiriam essa teoria em muitos casos, vamos ao ponto mais simples — a criança e o pai ou mãe solteiros ou viúvos deixam então de ser uma família?

E não só isso, no caso de uma mãe que tem uma criança e, por qualquer motivo, começa um relacionamento com outra pessoa — só se considera família o pai original? O pai novo também vale? Se a criança mantiver contato com os dois pais, deixou de ser uma família?

Na prática, a teoria faz muito pouco sentido.

4- "A maioria é quem manda!"

Em uma democracia de fato isso ocorre, mas… alguém sabe a opinião da maioria?

Esse argumento só valeria para se posicionar contra se a lei previsse que a minoria devesse se adequar ao que a maioria faz.

E ainda assim, a maioria seria de famílias que fogem à norma. É sério: 50,1% das configurações de família não se adequam ao molde da "família tradicional", de acordo com o IBGE.

Isso sem falar que a única votação feita no sentido de mostrar se a maioria concordava ou não com a definição do que é uma família foi a enquete realizada pela Câmara na Internet que, além de não ter representatividade de nível total da população, podia ser facilmente manipulada, permitindo votos repetidos. Ah, e ainda assim, o lado que ganhou foi o que é contra a definição tradicional.

Ou seja, se é a maioria que manda, acabou a "família tradicional".

5- "Gays não fazem casal, fazem par"; "De acordo com o dicionário…"

Estes são uma série de argumentos que considero os mais fracos, especialmente porque língua é algo extremamente mutável. Mas quebrar estes argumentos é muito mais fácil do que toda a discussão linguística.

Eu peguei meu Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, de 2009.

Eis o que ele diz sobre "casal":

casal s.m. (870) 1 povoado pequeno; lugarejo <após o bródio, os ganhões recolhiam aos seus casais> 2 pequena propriedade <tenho dois casais com oliveiras> 3 par formado por macho e fêmea 3.1 marido e mulher 3.2 qualquer par de pessoas cuja relação é amorosa e/ou sexual 4. p.ext. duas coisas iguais; par, parelha

Ou seja, no mesmo lugar temos a informação de que a palavra "par" é sinônimo de "casal", inviabilizando o primeiro argumento ridículo e a definição de que, além da definição tradicional, também aceita-se "qualquer par de pessoas cuja relação é amorosa e/ou sexual".

Mas espere: e "família"?

família s.f. (sXIII) 1 grupo de pessoas vivendo sob o mesmo teto (esp. o pai, a mãe e os filhos) 2 grupo de pessoas com ancestralidade comum 3 pessoas ligadas por casamento, filiação ou adoção 3.1 fig. grupo de pessoas unidas por convicções ou interesses ou provindas de um mesmo lugar <uma f. espiritual> <a f. mineira> 3.2 grupo de coisas que apresentam propriedades ou características comuns <porcelana chinesa da f. verde> (…)

Não resta dúvida — não há como usar o dicionário ou a linguagem como argumento. No máximo, o dicionário apoia a variedade de famílias.

6- "Não se pode considerar afeto como base para constituição familiar"

…peraí, este argumento acabou de sugerir que o afeto não é a base de um casamento que, afinal, é o que seria a tal base da "família tradicional"?

Eu nem havia considerado este originalmente, mas tive que escrever, porque ele aparentemente está no texto do tal Estatuto.

Esse argumento me parece o mais puro desespero, pelo simples fato de que na tentativa de ataque dele, ele torna o casamento meramente utilitário — ou seja, se o afeto não deve ser considerado base para constituição de famílias, além de tentar derrubar outras formas de núcleos familiares, o projeto basicamente apoia o casamento por interesse. Este argumento, interessantemente, contradiz até outros argumentos religiosos que falam do assunto, o que é uma surpresa.

Mas o básico é que… bem, a lei não concorda com este argumento. Não falta histórico para isso.

7- "A reprodução só pode ocorrer entre homem e mulher!"; "Gays não se reproduzem"; "Se não houver família tradicional, a humanidade vai entrar em extinção!"; "Deus criou Adão e Eva, não Adão e Ivo!"

Este aqui tem tantos problemas que nem sei por onde começar.

Creio que o ângulo LGBT deve ser o primeiro, porque é a homofobia que é um dos pontos principais por trás deste argumento: se a sua preocupação é com a reprodução, motivo por qual quer evitar que gays constituam famílias, creio que você deveria se preocupar com casais hétero em que um dos membros, ou os dois, é infértil.

Além disso, vale lembrar que homens e mulheres, conforme envelhecem, podem se tornar inférteis. Eles perdem o status de família a partir daí também?

E o argumento da extinção… Uau, este é ignorância pura: os números em estudos apontam para uma população gay no Brasil de aproximadamente 18 milhões de pessoas. Considerando que nós ultrapassamos 200 milhões, o número não equivale nem a 10%. Convenhamos que, se por acaso esses 10% não se reproduzissem de nenhuma forma, o problema seria dos outros 90%, que ou teria se tornado infértil ou simplesmente incompetente.

Ah, e para qualquer argumento sobre Deus, relacionado a reprodução ou não, veja o item 2 deste texto.

8- "Se aceitar isso, vai ficar incentivando!"

Outra coisa que não bate é essa ideia de que a exposição a gays e a famílias não tradicionais seria um incentivo. Por essa lógica, como é que o oposto não ocorre?

Isso também não concorda com qualquer um dos outros números, seja os 50,1% da família não-tradicional ou a minoria numérica da população LGBT. Sem falar que a inconstitucionalidade também cai como uma luva, já que argumentos neste sentido podem ser facilmente classificados como preconceito.

Sem falar que, reforçando, os 50,1% das famílias "não-tradicionais" inclui MUITA gente que não entra nos tais 10% LGBT da população.

9- "Tenho que apoiar o Estatuto porque a oposição é manobra política para empurrar outras pautas!"

O Estatuto também está sendo apoiado por políticos que também tem seus próprios interesses. Desse modo, o uso deste argumento evidencia uma ou mais das seguintes opções:

a) Ignorância, de achar que apenas a oposição tem interesses políticos;

b) Ingenuidade, por pensar que quem está do "seu lado" não tem interesses alheios a este;

c) Crueldade, por apoiar um jogo político que utilize direitos humanos como arma;

d) Desonestidade, pois se você sabe que há interesses políticos de ambos os lados e decide se aliar pessoas que jogam sujo puramente por apoio político, você também joga sujo.

10- "Não concordo!"

Nesse caso, o problema é seu.

Eu também não concordo com você.

Por que chamar alguém de “Vagabundo” é algo ruim para todos

(Mais um texto derivado de conversas minhas em redes sociais. Desta vez, foi algo que postei no Twitter.)

Cada vez mais noto meu ódio e eterno incômodo por generalizações. Estava pensando sobre a palavra “vagabundo.”

Eu estava lendo algo sobre cercas elétricas na internet, e lógico, nos comentários alguém falou “É bom que esteja funcionando pra fritar vagabundo.”

Eu fico um teco incomodado ao ouvir coisas assim.

Porque lógico, eu entendo a motivação da pessoa, de proteção etc. Ninguém quer criminosos e ninguém quer ser ameaçado. Mas essa pessoa claramente chegou em um nível de generalização bem alto para falar algo do tipo.

“Vagabundo” é a palavra-chave que te permite esquecer que a outra pessoa também é filha de alguém e também tem vida.

“Vagabundo” é o termo que usamos quando nos permitimos pensar que a outra pessoa é ruim simplesmente por ser, e que não tem cura.

Chamar de “vagabundo” é acreditar que a pessoa tem a mesma base que você e que só não escolhe ser como você porque não quer.

Especialmente porque o “vagabundo” é quase sempre colocado em oposição ao “trabalhador honesto”. E isso é algo incutido, tanto que é o argumento que diversos criminosos usam quando são presos. Eles sabem que para o sistema que os prende, se conseguirem convencê-los que não são “vagabundos”, estarão bem. Porque só quem é chamado assim se dá mal.

E note que esse é um termo que é usado para empurrar quem está por baixo para baixo. Você não ouve, ao menos não da mesma maneira, um político que rouba ser chamado de “vagabundo”.

Não defendo qualquer crime, longe disso. Mas eu entendo que comportamentos como esse só aumentam uma segregação. Um criminoso é um criminoso. O que varia é o crime. Porque reservamos termos especiais para alguns? É algo para se pensar.

Porque se deixamos que ocorra a desumanização de qualquer um, é nossa própria humanidade que é ameaçada. E isso eu não posso aceitar. Nós já temos leis que ditam crimes – ainda que com imensas falhas – e um criminoso já é um tabu suficiente.

[sarcasmo]
Afinal, não é como se fosse relevante para alguém que você menosprezasse, detestasse apenas um segmento da sociedade, não é mesmo? Não é como se não fosse relevante para um sistema problemático que a segregação nunca chegasse em cima, não é?
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Antes que falem, isto acima não foi uma teoria conspiratória. Quer outra evidência?

Em todas as manifestações que tem acontecido nos últimos meses, eu ouvi a palavra “vagabundo” em outro contexto. Era o de manifestantes.

E não era nem o caso dos Black Blocs ou dos chamados pelos noticiários de “vândalos”. Não precisamos ir longe para ver pessoas chamando qualquer um que se vai para a rua se manifestar contra algo de “vagabundo”. Aqui, a torcida não era para serem fritos pela cerca elétrica, mas acertados pelas balas de borracha e pela pancadaria.

Agora não venha me dizer que ninguém está ganhando com essa história de chamar os outros de “vagabundo.” Porque, no mínimo, o termo está te colocando no lugar que é relevante para alguém.