Girafas

A história é repleta de situações em que uma palavra costumava ter um sentido e, pelo uso popular, forçam-se novos significados e o original é esquecido ou cai em desuso.

Dizem que a primeira vez que o povo do Japão travou contato com uma girafa, eles chamaram o animal de “kirin”. A palavra soa familiar? Pois é, é exatamente a mesma que aquela marca de bebidas.

Só que “kirin”, originalmente, não é nem algum tipo de bebida e nem uma denominação de “girafa”. “Kirin” ou “qilin” ou “kylin” é um criatura originada na mitologia chinesa, uma espécie de dragão cuspidor de fogo que protege pessoas boas e não pode ser domado.

Se você reparar bem, o logotipo da marca Kirin leva uma versão desse animal esquisito. A imagem que abre este texto é de um Kirin. Agora me diga, ele parece uma girafa? Eu, pelo menos, não consigo ver muita semelhança (ok, talvez nos "chifrinhos"). Mas alguém viu semelhança o suficiente e chamou a girafa de “kirin”, e até hoje essa palavra denomina o animal real e o animal imaginário.

Quando eu aprendi essa história, ela me deixou um bom tempo pensando sobre as denominações que damos a outras coisas. Digo isso porque encontramos todos os dias inúmeros exemplos de coisas assim.

Todo bom falador de inglês sabe, por exemplo, que “gay”, antes de se referir a uma orientação, antigamente se referia a algo alegre. E, já que estamos neste exemplo, vale lembrar que “faggot”, hoje uma gíria pejorativa para denominar um homem gay, já foi usada como um termo pejorativo para mulheres e possivelmente deriva de “fagot”, que denomina, entre outras coisas, um “pacote” ou um conjunto de gravetos amarrados.

Em português, não usamos “faggot” de maneira corrente, mas usamos “veado” ou “viado”. Alguém poderia dizer que “veado” teria sido atribuído devido ao aspecto mais frágil do animal, mas aparentemente esse não é o caso: popularmente, fala-se que “viado” é derivado de “transviado”. Assim, “transviado” teria originado “viado”, que teria originado “veado”, que teria sido relacionado, por exemplo, a “Bambi”, derivação óbvia pelo personagem de mesmo nome, ou associações com o número 24, que representa o animal no Jogo do Bicho.

É realmente interessante, para mim, observar esse tipo de coisa. Muitos linguistas afirmam (e aqui, estou parafraseando) que o significado real de palavras é o que se faz delas, entendendo que a língua possui vida própria. Esse é um posicionamento que é denominado “descritivismo”. Assim, simplificando bastante, tentar prender palavras em significados antigos seria inútil, e tentar criar novos significados em palavras só funcionaria com a adesão popular.

Em outras palavras, no Japão girafas são kirins porque as pessoas as chamam de kirins e não de girafas, e “gay” não é mais o mesmo que “alegre”, ainda que vários livros antigos utilizem o adjetivo nesse sentido.

O dicionário Merriam-Webster da língua inglesa, declaradamente descritivista, destacou-se nos últimos anos com momentos em que posicionava-se com a visão de que o que vale é o uso corrente, não o que a tradição da língua insiste. Um primeiro caso interessante foi quando reconheceram o uso de “literally” (“literalmente”) tanto para significar “literalmente” quando “figurativamente”. Um segundo momento, mais recente, foi quando apoiaram o uso do pronome “they” (“eles/elas”) como um pronome singular de gênero neutro.

Nós estamos em um momento em que é particularmente fácil de identificar esses efeitos sociais. É fácil de ver como, nas décadas passadas, vários movimentos sociais tomaram de maneiras diferentes certas palavras e buscaram ressignificações, muitas vezes adicionando níveis de significado antes ausentes. A comunidade negra anglófona, por exemplo, em especial nos EUA, apropriou-se do termo racista “nigger" para se fortalecerem. Na mesma linha, porém de maneira diferente, o movimento feminista “Slut Walk” (em sua encarnação em português, “Marcha das Vadias”) tomou o insulto de “slut” (“vadia”) para falar de liberdade, por entenderem uma dissociação do significado que era entendido da palavra.

Inúmeras outras frentes de grupos hoje buscam ressignificar termos pejorativos ou incentivar o uso de expressões mais inclusivas ou que expliquem melhor identidades e características referentes a seus grupos. Alguns termos, aliás, nem eram exatamente novos: você já ouviu a expressão “neurotípico”? Pois ele designa o indivíduo que não apresenta distúrbios significativos no funcionamento psíquico. O termo, junto de seu oposto “neuroatípico”, tem ganhado mais notoriedade conforme algumas pessoas notam que chamar alguém que possui algum distúrbio mental ou emocional de “anormal” (em oposição a “normal”) mais atrapalha do que ajuda.

Não foram só os movimentos sociais de minorias (em números ou em direitos) que descobriram o poder das palavras. Você já reparou nos usos que a palavra “família” tem? E a expressão “família tradicional”? Em 2015, ambas expressões deram o que falar, especialmente depois da aprovação do chamado “Estatuto da Família”, que, idealizado por bastiões do conservadorismo, denominava que “família” é exclusivamente a união de homem e mulher, colocando no papel tal definição.

Por mais que o papel e a definição existam, por mais que possa efetivamente influenciar algum nível de ações jurídicas, a realidade é outra. Inúmeras manifestações demonstraram que famílias continuam existindo e continuarão existindo e se denominando como tais, mesmo que não sejam formadas a partir da união de um homem e de uma mulher. Não interessa se um grupo acha que o significado de uma palavra deve ser o que eles pregam.

Nessa luta de significados, um caso extremamente peculiar é a recente tentativa de criação do conceito de “cristofobia”, denominada por alguns indivíduos cristãos como a perseguição religiosa por suas crenças. A semelhança do termo com “homofobia” não é à toa, já que a expressão foi usada, ao menos inicialmente, em resposta a acusações de comportamento homofóbico que foram justificados com religião. Ou seja, tentaram usar significados: criaram uma palavra para ressignificar a reação de outras pessoas ao que faziam.

Não fui eu, aliás, quem disse que o intuito por trás do termo é esse, a comparação foi do vereador que tentou emplacar o "Dia do Combate à Cristofobia."

Acho que todos nós temos muito a aprender com a visão japonesa das girafas. Mesmo que você chame uma girafa de kirin, se ninguém mais a chamar de “kirin”, ela continuará sendo uma girafa. Ela só será “kirin” se pessoas o suficiente a chamarem de “kirin”.

Você pode tentar trocar “estão reclamando que eu estou falando que gays são aberrações e não quero isso” por “estou sofrendo cristofobia”, e pode até tentar aprovar uma lei para tentar se proteger de reprovação moral (e nada além disso) que continuará existindo.

Mas entenda uma coisa: mesmo que você force todas as pessoas a concordarem com você por fora, mesmo que cale as bocas de todos que discordarem, mesmo que os puna, sua girafa continuará sendo uma girafa.